segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Notas sobre a Antropofagia

(por Benedito Ferreira)


“Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago.”


Viva o povo brasileiro? Quem?
Desde os movimentos de Vanguarda do século XX, do surgimento da antropologia como disciplina, das primeiras guerras coloniais, da emergência da má consciência não me parece possível idealizar uma única versão para indivíduos agrupados geopoliticamente sob uma só fórmula identitária, o que vemos são grupos de indivíduos, tribos, subjetividades.

Fica a questão: Como, na contemporaneidade, propor um termo tão grande como "povo brasileiro"? De quem se fala? Para quem se fala? Um dramaturgo de naturalidade brasileira, por exemplo, escrevendo um espetáculo que se passa na Escócia, Portugal e Egito, por exemplo, está escrevendo um texto brasileiro somente pelo fato de que ele é, de RG, um brasileiro?

Práticas oswaldianas:
- o discurso ressentido das relações coloniais torna-se discurso produtivo de identidades;
- antropofagia lida de diversas maneiras: como motor de construções identitárias, como discurso estético, literário, como expressão da brabárie;
- desestruturação das oposições dicotomicas como colonizador/colonizado; civilizado/bárbaro; natureza/tecnologia;
- mais como ironia do que como um projeto politico.

Tais práticas, principalmente a última, se relaciona com aquilo que abordei de "montagem intelectual" e, adiante, ao teatro épico e sua relação com o "espanto".

Antropofagia e canibalismo
Alguns autores trabalham com uma distinção entre essas palavras, considerando a expressão canibalismo própria para o ato de se alimentar de carne humana, enquanto o uso da palavra antropofagia ligaria o ato a um ritual.
(não cabe essa distinção dos dois termos, já que a devoração da carne humana será sempre permeada por uma conotação simbólica mesmo quando o gesto de devorar é decorrente da contingência ou necessidade.)

Mais do que tratar de “o que” pode ser comido, refere-se a “como” se dará a devoração.

Quem a gente devora, então?
Com a apologia da devoração da diferença, Oswald ultrapassa a concepção freudiana que limitava o canibalismo à devoração de objetos com qualidades desejáveis. Tal noção do canibalismo, por ser largamente difundida, provoca pelo equívoco de que só, e somente só, os bravos guerreiros eram devorados; contudo, no ritual tupinambá que inspirou o modernista, covardes, mulheres e crianças, seres mais frágeis, também foram vítimas sacrificiais.
Não é o objeto da devoração que será classificado, mas a própria devoração que se define como “alta” ou “baixa”, ou seja, o gesto acabado em si mesmo, de pura violência e destruição do “baixo canibalismo”; ou o gesto produtor do devir, da diferença, da multiplicidade, da incorporação do “alto canibalismo”.

Oswald e Freud
Na obra de Oswald, particularmente ao cunhar o conceito de antropofagia, está evidente a influência da leitura de Sigmund Freud. Um ponto levantado pelo psicanalista, em seu texto Totem e Tabu, “a apropriação das qualidades do objeto”, é apontado por muitos críticos como marca dessa influência. Em Freud, tal apropriação refere-se à devoração do pai, e esse foi o mote do modernista para proclamar seu “alto canibalismo”, um canibalismo produtivo, já que a morte do pai leva à distribuição das mulheres entre os filhos e, portanto, a sua reprodução, contra um “baixo canibalismo”, restrito ao âmbito da destruição.

Pequena Consideração (1)
Assim, a antropofagia não aparece somente como um modo de analisar a cultura americana, mas também como uma atitude antropofágica, um modo de atuar a partir de outros paradigmas, que não aqueles colocados pela tradição grego-romana próprios da cultura européia.

Oswald e o tempo
Silviano Santiago ressalta um aspecto fascinante da proposta de Oswald: a ruptura com a noção de tempo determinista e linear que implica uma assimilação do outro hierarquicamente, e, ainda, leva ao recalque de seus valores. A hierarquia hipervalorizada impõe às produções periféricas uma visão de que essas estariam em eterno atraso e não teriam possibilidade de originalidade.

Nota 01: Como acontece com o cinema de Glauber - não há uma narrativa localizada, que estabelece uma montagem que "localiza o espectador" em "começo-meio-fim", ou seja, que propõe uma narrativa historiográfica. Trata-se aqui de fragmentos, de versões, de rupturas.

Oswald e os pensadores da cultura brasileira
Com as possibilidades que a antropofagia abria para o pensamento cultural, seduziu pensadores do começo do século brasileiro, levando-os à trabalhar diferentemente com as referências da tradição africana, européia e ameríndia. Ao contrário de outras correntes sociológicas vingentes no Brasil, como a de Gilberto Freire, que cunhou o conceito de “democraciaracial”, e de Sérgio Buarque de Holanda, o de “homem cordial”, a concepção de antropofagia não apaga a violência do encontro étnico que ocorreu em terras de Pindorama. A morte causada pela devoração, implícita ao ato antropofágico, pressupõe a destruição física do devorado e aponta para o aspecto mais condenado da antropofagia: sua ligação com o primitivo ou mesmo com a animalidade.

João Ubaldo e Oswald
Enquanto Eneida Leal Cunha, no artigo “A Antropofagia, antes e depois de Oswald”(1995), desenvolve uma aproximação entre o poema colonial Caramuru, de Santa Rita Durão e o romance contemporâneo Viva o Povo Brasileiro, de João Ubaldo Ribeiro, tendo em vista “o lugar de Oswald entre outras emergências da antropofagia”. A autora apresenta um quadro “no qual saltem aos olhos o diálogo e as divergências entre esses três e diversos antropófagos, que transformaram a antropofagia em traço de identidade”(Cunha, 1995:49) que possibilita pensar Oswald de Andrade a partir do problema da construção do nacional.

Glauber e Oswald
Os aspectos centrais do movimento antropofágico sedimentaram uma outra óptica para a relação entre o local e o universal, num processo de desierarquização que significa a possibilidade de uma expressão própria dos países de economia periférica, importante tanto para quem se expressa, quanto para o outro, o receptor.

A língua portuguesa e Oswald
Contra o gabinetismo, a prática culta da vida. Engenheiros em vez de jurisconsultos, perdidos como chineses na genealogia das idéias.
A língua sem arcaísmo, sem erudição. Natural e neológica. A contribuição milionária de todos os erros. Como falamos. Como somos.”

O que Oswald não permite, então?
“admiração beata da cultura européia e as reivindicações estreitas e xenófobas pelo autenticamente nacional”

Um bocó e a antropofagia (dicas de cuidados)
(q)ualquer bocó que copia, ‘cita’ ou ‘sampleia’ qualquer bobagem européia ou americana, de arranjo de metais a instalação, acha que está sendo ‘antropofágico’. O conceito moderno passou a servir de salvo-conduto para o vale-tudo pós-moderno ou para conferir status cultural a subprodutos.

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